Por:Circuito PSI
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jan 2017
Autor: Marcelo Luis Horta Silva Mariano.
O que pretendo neste artigo é contrapor alguns pontos do capítulo IV de Totem e Tabu de Freud e do capítulo VIII de O Seminário, livro 17, de Lacan. Escrevi tendo em vista apenas tópicos da obra freudiana que me chamaram a atenção tanto na ênfase dada por Freud quanto nas considerações de Lacan.
Os postulados teóricos novos de Lacan, como a questão do sujeito e o conceito de gozo, podem culminar em alguns mal-entendidos teóricos. Perpassarei por ambas as teorias na tentativa de desenvolver uma possível linha tênue de convergência, enfatizando alguns momentos em que Lacan se interpõe a Freud.
1.1. Édipo e o assassinato do pai
Logo de inicio, mais especificamente no prefácio à primeira edição de Totem e Tabu, Freud (1913) se diz preocupado em diminuir a distância existente entre estudiosos de outras ciências e a psicanálise. O que lhe importa aqui não é completar o que falta às outras, mas, oferecer uma iniciação em sua nova descoberta – por assim dizer, a psicanálise.
O capítulo IV que é o que nos interessa, Freud (1913) utiliza-se da obra de 1910 de J.G. Frazer[1] para complementar seu pensamento. Segundo Frazer, citado por Freud (1913), os membros de um clã acreditam possuírem um só sangue, chamam a si próprios pelo nome do totem e são realmente descendentes dele[2]. No clã, “os membros (…) são irmãos e irmãs e estão obrigados a ajudar-se e proteger-se mutuamente”. (FREUD, 1913, p. 113). Os tabus que se estabelecem correspondem à proibição manifesta dos membros de um mesmo clã totêmico de casar-se e/ou manter relações sexuais entre eles.
É interessante observar que as primeiras restrições produzidas pela introdução das classes matrimoniais afetaram a liberdade sexual da geração mais jovem(isto é, o incesto entre irmãos e irmãs e entre filhos e mães), enquanto que o incesto entre pais e filhas só foi impedido por uma extensão ulterior dos regulamentos. (FREUD, 1913, p. 128).
A tentativa articulatória de outras teorias à teoria de Freud (1913) se fortalece ao introduzirem-se no texto alguns fragmentos da teoria Darwiniana sobre o estado dos homens primitivos, o que “(…) poderia ser descrita como ‘histórica’”. (FREUD, 1913, p. 131).Como ponte, Freud (1913) ressurge com o caso do ‘Pequeno Hans’ e alude a importância do totemismo na infância – título conferido ao capítulo IV[3] – articulando a substituição pela criança dos sentimentos pelo pai para um animal. Aliás, esse me parece ser o ponto-chave de conexão entre o que foi apresentado até então em Totem e Tabue a explicação originária de toda a lógica da civilização, ou seja, a questão do totem para os povos antigos deslocados ulteriormente para o animal, porém, preservando seu fundo de castração embreado pelo pai primevo. O que emerge nessa tentativa de Freud (1913) não poderia ser outra coisa senão o próprio Édipo e suas duas proibições[4].
A primeira conseqüência de nossa substituição é notabilíssima. Se o animal totêmico é o pai, então as duas principais ordenanças do totemismo, as duas proibições de tabu que constituem seu âmago – não matar o totem e não ter relações sexuais com os dois crimes de Édipo, que matou o pai e casou com a mãe, assim como os dois desejos primários das crianças, cuja repressão insuficiente ou redespertar formam talvez o núcleo de todas as psiconeuroses. (FREUD, 1913, p. 137).
Para Lacan (1992) é justamente no mito de Édipo, tal como enunciado, que se encontra a chave do gozo, porém, equivoca-se ao dizer que a forma como Freud enuncia-se dele transmite a idéia de que o “(…) o assassinato do pai é a condição de gozo” (LACAN, 1992, p. 126). Entendo que a história não pára por aí. Édipo, ao herdar a esposa de Laio, herda uma mulher, que posteriormente revelar-se-á ser essa sua mãe. Cega-se ao saber disso. Imprestável que foi em sua própria ignorância. Foi esse o desfecho por algo que já sabia a respeito, pela revelação feita pelo oráculo. O que talvez lhe foi impossível de olhar por “nunca” realmente “ter usado os olhos”. O que se concretiza é um preço a ser pago pela via da escolha, tal como diz Lacan (1992). Até aí, tudo certo; porém, ao ser enunciado, se não me engano por Creonte, de que esta é sua mãe, possibilitou a Édipo o contrário, ou seja, a própria impossibilidade de gozo sexual. Laio renasce pela via da linguagem enunciada como uma não-condição em Édipo de desfrutar o “dormir com a mãe”.
1.2.Refeição Totêmica: Luto e Festa
Logo no inicio de (5), Freud (1913) estabelece um paralelo entre a refeição totêmica e a questão do luto no clã. Ele enaltece que somente pela participação de todos os seus membros, sabendo-se da proibição, é possível que tal ato seja executado, “(…) não podendo ninguém ausentar-se da matança e da refeição”. (FREUD, 1913, p. 144). Porém, a questão do luto é também seguida de festa, e o evento festivo se dá pela liberdade até então supostamente obtida para se fazer o que antes lhes era proibido. Supostamente; pois que Lacan (1992), retruca: “(…) a conclusão que se impõe no texto da nossa experiência é que ‘Deus está morto’ tem como resposta ‘nada mais é permitido’”.(LACAN, 1992, p. 126). Para Freud (1913), o animal totêmico nada mais é que o próprio pai representado, como já foi visto; porém, a ambivalente emoção representada pelo ato da morte do totem – luto e festa – traz a tona à hipótese dos sentimentos ambivalentes também dos filhos perante o “complexo-pai”que persiste por toda a vida adulta.
Freud (1913) atenta, então, para as hipóteses descritas por Robertson Smith[5], sobre a – “(…) matança sacramental e a ingestão comunal do totem animal” (FREUD, 1913, p. 143)– atribuindo a elas caráter valorativo de importância para a religião totêmica[6]. Partindo da premissa Darwiniana, sobre os estados primitivos do homem, Freud (1913) encontra “(…) um pai violento e ciumento que guarda todas as fêmeas para si próprio e expulsa os filhos à medida que crescem”.(FREUD, 1913, p. 145); o que culmina talvez em sua mais polêmica dedução:
Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram a coragem de faze-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer individualmente. (…) Selvagens canibais como eram, não é preciso dizer que não apenas matavam, mas também devoravam a vitima. O violento pai primevo fora sem duvida o temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e, pelo fato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força. A refeição totêmica (…) seria assim uma repetição, e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião. (FREUD, 1913, p. 145).
Odiavam o pai pelo que ele representava como obstáculo dos anseios sexuais e amavam-no também tanto quanto lhes servisse sua admiração. Satisfeito o ódio pela refeição totêmica e posto a identificação que tinham por ele, a afeição de antes recalcada fez-se sentir sob a forma de “remorso”. Eis que surge o que quero tanto enfatizar, ou seja, o sentimento de culpa. “O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo (…)”.(FREUD, 1913, p. 146). O que foi criado pelo próprio sentimento de culpa foi “os dois tabus fundamentais”que correspondem “aos dois desejos reprimidos do complexo de Édipo”. Dessa forma, os irmãos do totem renunciariam às mulheres que tanto desejavam para salvar a organização de outrora que os fortalecera[7].
O sistema totêmico pode ter sido ou foi, como enuncia Freud (1913), uma tentativa de reconciliar, realizar um pacto com o pai. A religião totêmica e também todas as outras religiões surgem do sentimento de culpa e da tentativa de apaziguar o pai.
À proibição, baseada na religião, contra a morte do totem juntou-se então a proibição socialmente fundamentada contra o fratricídio. Foi somente muito depois que a proibição deixou de limitar-se aos membros do clã e assumiu a forma simples: ‘Não matarás!’. (FREUD, 1913, p. 149).
Assim como o totem passa a ser o primeiro representante paterno, o deus virá posteriormente e é aí que o pai retoma a sua aparência humana. O que era de desejo dos irmãos separadamente era tornar-se semelhante a ele; por isso, a refeição totêmica. A outra esfera que surgiu, junto à religião, foi a organização social que se estabeleceu. Uma sociedade sem pai se transformou em uma “sociedade organizada em base patriarcal”.(FREUD, 1913, p. 152), ou, em outras palavras, em uma família. A partir daí, Freud (1913) introduz o surgimento do sacerdote, único intermediário capaz de uma aproximação de Deus, e os reis, introduzindo um sistema patriarcal ao Estado. O sentimento de culpa do filho nunca se extinguiu [e nunca se extinguirá].
Boons, citada por Lacan (1992), deu a entender que muitas coisas decorrem da morte do pai tal como enunciado por Freud e que isso sugeriria uma liberação da lei. Muitos temas atuais parecem decorrer disso. Mas Lacan (1992), para contradize-la, nos revela que não é nada disso, pois que, como já foi dito anteriormente, ‘nada mais é permitido’. Ocorre-me algo estranho quando leio o que Lacan (1992) profere: ”(…) é a partir da morte do pai que se edifica a interdição desse gozo [dormir com a mãe]como primária” (LACAN, 1992, p. 126); penso que Freud pretendeu enunciar essa interdição quando postulou o sentimento de culpa emergente entre os irmãos do clã. Não se trata da morte do pai, como diz Lacan (1992) e, sim, do assassinato do pai. O que causa estranheza é que talvez através de uma leitura apurada da obra freudiana possa se interrogar ambas as teorias a respeito e ambas estariam tratando do mesmo, sentimento de culpa e/ou remorso em Freud e interdição de gozo para Lacan da forma como o entendeu. Parece-me que Freud estaria preocupado em estabelecer um paralelo teórico que justificasse a organização social, a religião e a própria manutenção da psicanálise como doutrina, talvez decorrente de sua crença de que tudo isso fosse real; e Lacan, em contrapartida, preocupado apenas com a questão do sujeito. É até possível imaginar que um decorre diretamente do outro, seja, tal sentimento de culpa resultou em uma expressão direta de interdição de gozo, pois que nenhum dos irmãos poderia ocupar o lugar vazio do pai primevo.
[1]FRAZER, J. G. Totemism and Exogamy (4 vols.) Londres.
[2] Parece-me que Freud conduz o texto de forma peculiar conforme sua suposição sobre o “Mito do Pai Primevo”.
[3] O Retorno do Totemismo na Infância
[4]Parece-me que neste ponto Freud começa a acreditar que isso realmente aconteceu, que é real, como profere Lacan (1992 p. 130).
[5]SMITH, W, Robertson. Lectures on the Religion of the Semites, nova [2º] ed. Londres.
[6] Freud (1913) adota a hipótese de Robertson Smith para posteriormente desenvolver a sua própria.
[7]Um paralelo que desejo fazer aqui aos dias atuais talvez traga à luz uma explicação possível de repetição, tomando como base o Mito do Pai Primevo de Freud, para o que acontece de tempos em tempos na sociedade humana. Temas como menoridade penal, declínio da função paterna, dentre outros, me parecem relacionais com as mudanças naturais que ocorrem ao longo da história, talvez sempre repetitiva se tomarmos como base a teoria freudiana. Eis que me surge que o que está por detrás de tudo isso talvez seja uma irrompível situação que simplesmente e somente se repete. Mas deixarei isso para outra ocasião. Permaneçamos no enunciado de Freud.
Referências Bibliográficas: