Por:Circuito PSI
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ago 2017
Karla Cristiane Mariano.
O consultório de psicologia é, muitas das vezes, utilizado como um recurso para os casais que se apropriam do caráter confidencial como mantenedores de segredos estabelecidos socialmente. Sendo assim, conteúdos relacionados à fidelidade/infidelidade, podem ser tratados da mesma forma como os demais temas que tangem os casais na contemporaneidade.
Mas, lidar com o tema da infidelidade no setting terapêutico é de extrema delicadeza e um desafio para o terapeuta de casal. Segundo Brun (2006) uma das estratégias no trato com o tema é a criação de condições para surgimento de novas informações que facultem na construção de novas narrativas e novas ressignificações com a abertura para novas alternativas ao casal.
Há tempos, recebi, na clínica particular, um caso com uma demanda explícita: um casal de amantes procurou o atendimento psicológico para conseguir findar a relação extraconjugal que mantinham há mais de dois anos. Na época em que tratei este casal de amantes, chamou-me a atenção a primeira frase declarada na entrevista inicial: “Somos um casal, mas não somos uma família”.
Por ser um assunto muito controverso, que toca nas crenças mais profundas dos seres humanos sobre os relacionamentos amorosos, é sempre um desafio instigante abordar as relações extraconjugais, as quais estão no cerne de muitos conflitos conjugais e de problemas familiares, sendo fundamental que os terapeutas que trabalhem com casais e famílias, ou mesmo com indivíduos adultos envolvidos em relacionamentos amorosos, possam compreendê-las o melhor possível. (PRADO, 2009, p. 401)
Para entendermos sobre a infidelidade no casamento nos dias atuais, precisamos reconhecer que a transformação social, historicamente, vem interferindo no modo de relacionar-se (seja no casamento ou não). Ou seja, as questões de gênero como a emancipação feminina, questões de poder entre homens e mulheres, a difusão da contracepção moderna e das novas tecnologias reprodutivas, as ressignificações das relações de sexo e de prazer influenciam diretamente nas mudanças no casamento ao longo das décadas. Estas transformações apontam para importantes ressignificações de valores e costumes.
As transformações sociais que ocorreram a partir da segunda metade do século XX trouxeram questionamentos que colocaram em xeque valores e costumes da vida cotidiana dos indivíduos, nesse processo de desinstitucionalização e institucionalização dos acordos sociais. As concepções da marcação social que orientam esses acordos se apresentam em conflito entre os valores de integração e valores de individuação, na sociedade contemporânea. (COELHO, 2005, p. 186)
No Brasil, como em todo o mundo, o conceito de família nuclear e a instituição do casamento, que antes tinha relação direta com a Igreja, tiveram suas estruturas de modelo tradicional abaladas. A religião começa a perder força e não “segurar” mais os casamentos quando as relações passam a ser insatisfatórias. Com o aumento das separações conjugais, as questões particulares dos casamentos tornam-se pautas dos hiperespaços do judiciário, legalizando o divórcio no país.
O divórcio é instituído oficialmente com a emenda constitucional número 9, de 28 de junho de 1977, regulamentada pela Lei 6.515 de 26 de dezembro do mesmo ano. A lei regula os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos, e dá outras providências. Daí por diante, a lei do divórcio admitiu liberdade ao casal na manutenção ou abstenção da relação conjugal.
O que chama a atenção, contudo, desses rearranjos históricos da sociedade conjugal e do casamento é observarmos o que ocorreu com os contratos no casamento. Como esses contratos foram influenciados pelas tantas mudanças no casamento?
A história do casamento é regada por vários contratos criados e estabelecidos privativa e socialmente ao longo dos tempos. É evidente que os contratos também sofreram mudanças significativas, acompanhando a linha progressiva das redefinições das instituições sociais.
O constante reexame dos contratos de casamento, que se faz necessário com as mudanças dos contratos sociais, se refere às particularidades das relações conjugais estabelecidas em múltiplos campos relacionais do casal.
Partindo do suposto que todo contrato possui deveres e direitos para ambas as partes, Focault (1985/2007) escreve sobre os deveres e as obrigações no casamento contribuindo para a compreensão das alterações destes contratos em relação à cultura e a evolução histórica. Para o autor, os contratos de casamento fazem os cônjuges entrarem num sistema de deveres ou de obrigações (FOCAULT, 1985/2007). Os contratos, no entanto, para terem as convenções respeitadas mutuamente, os cônjuges, deveriam ter clareza dos acordos e desacordos:
Em documentos que datam do fim dos séculos IV ou III a.C., os engajamentos da mulher implicavam a obediência ao marido, a interdição de sair, de noite ou de dia, sem a sua permissão, a exclusão de qualquer relação sexual com um outro homem, a obrigação de não arruinar a casa e de não desonrar o marido, este, em compensação, devia manter sua esposa e não ter filhos das ligações que pudesse manter fora de casa. (FOCAULT, 1985/2007, p.83)
Mais tarde, Focault avalia que os contratos estudados, começam a especificar obrigações muito mais estritas do lado do cônjuge masculino. Há a interdição de se ter uma amante, ou um favorito, e de possuir uma outra casa, na qual, anteriormente, ele poderia manter uma concubina. Sendo assim, a exclusividade sexual passa a ser regra para o casamento.
Mesmo a regra sendo clara socialmente [1], até hoje, percebe-se privilégios de um gênero sobre o outro quando se trata de infidelidade no casamento. A existência do duplo código moral permite diferentes desempenhos dos papéis de gênero, e, consequentemente diferentes entendimentos sobre a possibilidade da existência ou não da infidelidade na relação. Geralmente, as explicações dessa diferenciação passam por discursos biológicos versus relações sociais/ religiosas.
Jablonski (2005) comprova essa “dupla moral” quando se trata de gênero nas questões relacionadas à fidelidade/infidelidade. Em pesquisa realizada, tanto em 1993 como em 2003, o pesquisador identificou o homem gozando de maior liberdade quando observado as respostas referentes à infidelidade.
Essa é apenas umas das facetas da infidelidade no casamento: as mensagens dúbias que envolvem simultaneamente a “nova” liberdade sexual dos relacionamentos “modernos” e a tradição familista.
De acordo com Macedo (2006) a infidelidade é parte do acordo implícito ou explícito entre os cônjuges. Sendo assim, a infidelidade não terá uma definição pronta, dependerá de casal para casal, de casamento para casamento. Pressupõe-se que dependerá, ainda, da época do casamento, do tempo de casamento e dos costumes dos casais. E mais: poderá variar na medida em que os cônjuges rompem com paradigmas antigos, ou seja, o que significa infidelidade no início do casamento pode não mais significar em algum outro momento do ciclo familiar e/ ou pessoal. “Então, uma definição mais simples de infidelidade seria: todo ato que viole o contrato do casal, sejam as regras desse contrato explicitadas claramente ou não” (MACEDO, 2006, p.136).
A fidelidade é assunto de família que segundo Macedo (2006) envolve o mito do amor duradouro. Daí a necessidade de também ser acordada entre os cônjuges. Após a união, os cônjuges dão como evidente o amor fiel, na maioria das vezes, mantendo um contrato implícito.
Questões da vida privada do casal podem impedir que alguns aspectos dos contratados em geral apareçam com clareza na relação, independentemente se os cônjuges conversam sobre os assuntos a serem acordados. Sabemos o quanto são influentes as crenças que o casamento vem carregando ao longo de sua existência e, que, somadas as crenças de cada cônjuge podem criar contextos de expectativas ainda mais complexos. E, mesmo que esses contratos existam de forma peculiar em cada relação, variando de casamento para casamento, alguns casais não tem claro critérios que definam a infidelidade.
A contratação dos critérios referentes aos acordos dependerá diretamente de alguns aspectos como: tempo de relacionamento, questões de gênero, religião, idade dos parceiros, costumes, tradições familiares, etc. E, dependerá indiretamente de outros aspectos mais profundos, como: crenças, mapas de mundo, mitos e lealdades familiares.
Percebe-se que os contratos de fidelidade e de infidelidade são tidos como produtos de contextos sociais e históricos, abrangendo fatores mais amplos do que o envolvimento emocional/ sexual propriamente dito.
Por isso, nem sempre a simetria entre o casal passa por construções de acordos explícitos. A TERAPIA DE CASAL pode auxiliar, e muito, nesta explicitação.
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.[1] No Brasil, como em tantos outros países, o casamento é oficialmente monogâmico.
BRUN, Gladis. A infidelidade bateu à nossa porta (do consultório ou de casa?): o que fazer? Ou melhor, como continuar pensando? In: COLOMBO, Sandra Fedullo. Gritos e sussurros: interseções e ressonâncias: trabalhando com casais. São Paulo: Vetor, 2006. 226 p. 51-62.
COELHO, Sônia Vieira. Casamento: mudanças e que trazem mudanças. In: AUN, Juliana Gontijo; VASCONCELLOS, Maria José Esteves de; COELHO, Sônia Vieira. Atendimento sistêmico de famílias e redes sociais: volume 1 : fundamentos teóricos e epistemológicos. 2. ed. Belo Horizonte: Ophicina de Arte & Prosa, 2005. 234 p. 181-196
FOCAULT, Michel. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Tradução de Maria Thereza da Costa Alburquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985/2007. 246p.
JABLONSKI, B. Atitudes de jovens solteiros frente à família e ao casamento: novas tendências? In: T. Féres-Carneiro et al. Família e casal: efeitos da contemporaneidade. (p. 93-110). Rio de Janeiro: PUC Rio. 2005.
MACEDO, Rosa Maria Stefanini de. Ligações perigosas: a infedelidade no casamento. In: COLOMBO, Sandra Fedullo. Gritos e sussurros: interseções e ressonâncias : trabalhando com casais. São Paulo: Vetor, 2006. 135-156p.
PRADO, Luiz Carlos. O casamento e as relações extraconjugais. In: OSÓRIO, Luiz Carlos; VALLE, Maria Elisabeth do (Org.). Manual de terapia familiar. Porto Alegre: Artmed, 2009. 401-415p.
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