Por:Circuito PSI
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fev 2017
Autora: Karla Cristiane M. Castro Mariano.
A emergência de “novos arranjos familiares” possibilita caracterizar o casamento, na atualidade, considerando configurações distintas da família patriarcal tradicional. No mundo globalizado, o casamento formal tradicional dá espaço ao dinamismo e à instantaneidade das relações (uniões estáveis), assinaladas pela informalidade e, reconhecidas legalmente. Este artigo elucida a dilatação do modelo de casamento na sociedade ocidental acompanhando algumas das mudanças sociais na ‘era globalizada’ que proporcionaram significativas transformações na ressignificação de valores e costumes. O artigo tem como objetivo ampliar conceitos e generalizações do casamento na ‘era globalizada’. Ao destacar o surgimento de “novos arranjos familiares”, construídos historicamente, ressalta-se os costumes dos novos laços conjugais que, aos poucos, vão se consolidando na ‘era globalizada’.
Durante muito tempo, desde a modernidade, o modelo de família nuclear (pai, mãe e filhos; necessariamente nesta ordem) foi considerado como o padrão esperado para as famílias imersas na cultura ocidental. O casamento era um fator crucial para a construção do modelo patriarcal.
Primeiramente, veremos um pouco da história do casamento, principalmente no Brasil. Depois, os efeitos da globalização no casamento, para então pensarmos sobre o casamento na ‘era globalizada’.
Um pouco da história do casamento
A modernidade, introduzida entre os séculos XI e XVII, deu início a um processo de dessacralização contemporânea da Igreja e de dessantificação da vida em comum, com a entrada da ética protestante e o modelo capitalista. Surgiram novos movimentos sociais e, consequentemente, novos arranjos sociais. Nessa nova organização da sociedade ocidental emergiram mudanças expressivas nos modos de vida pessoal, social e familiar. No casamento as mudanças são evidentes com a nova ideologia burguesa, que primava pelo casamento por amor.
A partir daí, segundo Coelho (2005), as transformações sociais passaram a interferir, necessariamente, nos arranjos conjugais. É claro que questões de gênero como a emancipação feminina, questões de poder entre homens e mulheres, a difusão da contracepção moderna e das novas tecnologias reprodutivas, as ressignificações das relações de sexo e de prazer influenciaram diretamente nas mudanças no casamento ao longo das décadas.
No Brasil, com a proclamação da primeira Constituição republicana em 1891, o país passou a refutar a união do Estado com a Igreja, deixando a religião católica de ser a religião oficial do Estado, desde então. O Estado começou a regulamentar o casamento legitimando-o como direito civil. “(…) o casamento civil passa a ser atribuição do Estado que também permite o culto de qualquer crença religiosa em seus domínios” (MARIANO, 2011, p.126). Tudo isso, obviamente, acometido pelas mudanças sociais ocorridas em território nacional.
As mudanças sociais ocorridas na sociedade brasileira, a partir da última metade do século XX, afetaram significativamente a família e o casamento como instituições sociais, emergindo uma demanda de novos comportamentos do homem e da mulher, de novas formas de relações familiares, nesses domínios particulares da estrutura social. (COELHO, 2005, p. 194)
Da década de 1970 à frente, as mudanças na legislação brasileira alteraram o prisma do casamento. A lei do divórcio, sancionada em 1977, admitiu liberdade ao casal na manutenção ou abstenção da relação conjugal. Porém, a lei do divórcio ainda não permitia a dissolução imediata da união. Somente a partir de 2010, com a promulgação da nova lei do divórcio, é que a dissolução do casamento civil foi facilitada, pois eliminou a exigência judicial prévia por mais de um ano ou de separação de fato por mais de dois anos.
No contexto contemporâneo, a desconstrução e a construção de novos significados para as relações interpessoais e seus arranjos mostram que a sociedade ocidental vem tentando reorganizar a noção do casamento. Hoje, um casamento “não é criado por um ato no cartório ou na igreja, nem por uma opção prévia, frágil“[…] (ARIÈS, 1982, p.164).
A globalização e o casamento
Atualmente, vivemos num processo de globalização que pode ser entendido como um fenômeno espontâneo e complexo dos processos de integração entre mundos, considerando os aspectos econômicos, sociais, culturais, políticos. Esses processos de integração referem-se à união dos países e dos indivíduos, com origem no final de século XX e no início do século XXI (STIGLITZ, 2002).
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, as nações de todo o mundo perceberam a necessidade de se aproximarem, ainda mais, para criarem mecanismos diplomáticos e também comerciais que pudessem evitar futuros confrontos. Isso proporcionou a expansão dos pequenos mercados, antes, somente internos e já saturados, levando as nações a se abrirem para os maiores mercados dos (ditos desenvolvidos) países centrais. Por esse motivo, a globalização pode ser vista como um fenômeno capitalista que marcou o crescimento da ideologia econômica do liberalismo.
Pela lógica, tais processos afetaram as sociedades como um todo, sendo a comunicação o aspecto mais visível desta integralidade. A abertura dos mercados gerou a expansão dos negócios, que, por sua vez, gerou maior volume de transações financeiras viabilizando o barateamento dos produtos em geral. Consequentemente, as pessoas passaram a adquirir mais produtos e, em se tratando dos produtos eletrônicos, as pessoas adquiriram um fluxo de idéias e de informações. Tudo isso via o aumento da universalização do acesso aos meios de comunicação pelos celulares, computadores, televisores, etc.
A comunicação, dessa forma, passa a se construir no mundo globalizado através das inovações tecnológicas declaradas nas subdisciplinas da comunicação humana: na teoria da informação, na comunicação interpessoal, nas telecomunicações, no marketing, na publicidade e na propaganda, dentre outras. A internet pode ser uma das responsáveis pela construção de uma rede mundial, desse processo integrativo, como fruto da globalização. E, é pela aldeia virtual global (pela internet) que as informações passam a circular em tempo real.
A partir daí, forma-se uma cadeia retroalimentável da comunicação (LASTRES; ALBAGLI, 1999). O acesso às informações possibilita a produção de conhecimentos, que estimula a busca de respostas às indagações e aos questionamentos inevitáveis com a admissão de novos elementos. Surgem assim, novos preceitos e novas premissas, facilitando a construção de novos paradigmas por intermédio da amplitude cultural concebida na globalização. A cadeia da comunicação traz, então, novas influências facultando o exercício de novos papéis sociais, no mundo globalizado, mais inclusivos e rearranjados aos novos estilos de se relacionar. Aqui, encontra-se o casamento, isto é, justamente nos novos modos de se relacionar.
Contrapondo a efervescência dos processos de integração, de acordo com Fonseca (1995), a globalização trouxe à tona pautas morais fundamentadas no individualismo, valorizando o desejo e a liberdade individual, e não mais o desejo do grupo (a sociedade, o Estado e a Igreja). Assim, a globalização estampa a perda da hegemonia de orientações comportamentais historicamente construídas, por exemplo, os padrões de famílias e as tradições do casamento.
As instituições sociais, logo, perdem espaço na ‘era globalizada’[1]. E, o casamento por ser uma instituição social, sofre, de tempos em tempos, influências dos movimentos/ mudanças sociais.
O casamento na ‘era globalizada’
As renovações institucionais provocadas pelas mudanças sociais na ‘era globalizada’, dificultam definir precisamente o casamento nos tempos atuais. A crença num espaço “desinstitucionalizado” para o comportamento amoroso coloca a institucionalidade do casamento em “crise”. A palavra “crise” tornou-se comum quando se trata de estudos da família e do casamento na contemporaneidade. Destaca-se aí crises morais, religiosas, de valores, e crise de instituições em geral. Mas, será mesmo que o casamento está em crise? Como se esquivar da instituição do casamento, legalmente constituído, para considerar uma união conjugal (união livre) “desinstitucionalizada”?
Geralmente a expressão “crise” é utilizada com conotação negativa, e, neste caso, associada à destruição e à extinção. Se pensarmos nas tantas mudanças das civilizações e consequentes modificações nas interrelações (que abrangem as relações familiares) creditaremos a tão mencionada “crise” e as transformações no contexto das instituições sociais, às mutações evolutivas da interação humana. A crise do casamento pode, então, também ser entendida como “(…) ‘possibilidade de evolução’ para novos e mais satisfatórios padrões relacionais” (OSORIO, 2011, p.20).
O que se percebe na ‘era globalizada’ é que com a possibilidade de “desinstitucionalização” do casamento, os pares acabam vivendo uma desestabilização do que antes era dado como estável aos atores sociais. Esse processo de mudança demanda uma reorganização das relações interpessoais, desconstruindo e construindo novos paradoxos.
As mudanças externas (sociais) trazem mudanças internas (contexto particular) para o casamento, exigindo maior flexibilidade dos pares quanto as expectativas pessoais e sociais perante as novas regras dos relacionamentos na ‘era globalizada’. Na ‘era moderna’, os cônjuges tramitarão entre os projetos individuais e os projetos do casal. Não obstante, a tramitação remete aos pares um contexto de ambivalência social com estímulos contraditórios. Por tantas vezes, observa-se o estímulo tanto pela permanência como pela dissolução do casamento.
Tal dimensão ambivalente resulta numa confusão de valores e um aumento da tensão para os casais. Coelho (2005) atesta que, ao mesmo tempo, valoriza-se a sexualidade livre e o ideal de relação monogâmica. Ao mesmo tempo, valoriza-se o individualismo e o familismo. Ao mesmo tempo, valoriza-se o apelo ao novo (descartável) e a noção de comprometimento como base para um casamento durar. Assim, em meio de outras tantas mensagens ambivalentes “(…) os casais já iniciam a união dentro da possibilidade de separação” (COELHO, 2005, p. 189), optando em não terem filhos evitando o efeito retardatário do possível (e quase certo) rompimento. Portanto, os casais na ‘era globalizada’ não mais são “obrigados” a manterem uma ligação ao modelo de família patriarcal ou ao mito de uma família unida “de antigamente”.
Conclusão
O casamento na ‘era globalizada’ renuncia às cotas da sacralidade e passa a ter a individualidade como princípio.
O mais importante, contudo, desses rearranjos históricos do casamento é observarmos os costumes e as tradições que vão se fundando na nova ‘era globalizada’. Ainda não podemos perder de vista, que somos “moldados” por inúmeras instituições sociais, estejam elas em processo de mudança ou não. Mesmo as novas relações e os novos arranjos familiares estão sujeitos à padronizações pelo mercado consumista. Atualmente, a comunicação de massa ajuda a divulgar as informações e, também, a padronizar comportamentos.
O certo é que as instituições sociais possuem uma força abrangente por se tratar de normas arraigadas no sistema de valores, sendo quase impossível de se esquivar da institucionalização (FONSECA, 1995). O que observamos hoje é uma “fratura” dos modelos tradicionais de família e de casamento, mas não uma ruptura. Ainda assim, em meio aos diferentes valores que regem a identidade na ‘era globalizada’, observamos a permanência de antigos mitos (caducos, mas não em desuso) somados à parcialidade do novo.
Como seres sociohistóricos presume-se que não estamos acima dos valores de nossa época. Por isso, “deixar o velho” e “assumir o novo” pressupõe o reconhecimento cuidadoso dos antagonismos presentes em nossa era como raiz para a compreensão das mudanças de uma “indissolubilidade do casamento” para os novos arranjos conjugais.
Referências
ARIÈS, Philippe. O casamento indissolúvel. In: ARIÈS, Philippe; BÉJIN, André. Sexualidades ocidentais: contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1982. 254p. 163-182p.
COELHO, Sônia Vieira. Casamento: mudanças e que trazem mudanças. In: AUN, Juliana Gontijo; VASCONCELLOS, Maria José Esteves de; COELHO, Sônia Vieira. Atendimento sistêmico de famílias e redes sociais: volume 1 : fundamentos teóricos e epistemológicos. 2. ed. Belo Horizonte: Ophicina de Arte & Prosa, 2005. 234 p. 181-196p.
FONSECA, Cláudia. Amor e família: vacas sagradas da nossa época. In: RIBEIRO, Ivete; RIBEIRO, Ana Clara Torres (Orgs). Família em processos contemporâneos: Inovações culturais na sociedade brasileira. São Paulo Loyola, 1995. 220p. 69-89p.
LASTRES, Helena Maria Martins; ALBAGLI, Sarita. Informação e globalização na era do conhecimento. Rio de Janeiro: Campus, 1999. 318p.
MARIANO, Marcelo L.H.S. Psicanálise e cidadania: uma intervenção do praticante de psicanálise no centro de referência da assistência social (CRAS) e outras questões. Curitiba: CRV, 2011. 249 p.
OSÓRIO, Luiz Carlos. Novos rumos da família na contemporaneidade. In: OSÓRIO, Luiz Carlos; VALLE, Maria Elisabeth do (Org.). Manual de terapia familiar.Porto Alegre: Artmed, 2009. Vol.2. 488 p.
STIGLITZ, Joseph E. A globalização e seus malefícios: a promessa não-cumprida de benefícios globais. 2. ed. São Paulo: Futura, 2002. 327p.
[1] Devido à existência de várias linhas teóricas que tentam explicar a origem e o impacto da globalização no mundo atual, adotaremos a expressão ‘era globalizada’ como concepção de uma sociedade mais abrangente no sentido de aceitação do diverso e, em que, no entanto, os desejos individuais se realizam nos espaços “desintitucionalizados”, autorizando assim uma premissa voltada para subjetividade; seguindo a linha de pensamento de Fonseca (1995).